sábado, 19 de junho de 2010

ESTOU A CHEGAR ÀQUELA IDADE...

Estou a chegar àquela idade:

"Em que os pensamentos se atropelam e as ideias se amontoam."

Em que não páras mas abrandas...

Em que finalmente alguma poeira começa a assentar, depois de tanta correria, sem sentido aparente...

Em que conquistas a tua independência, mas não queres estar sozinho...

Em que respiras fundo, só para sentir que estás vivo...

Em que contemplas o que te rodeia com paixão e serenidade...

Em que cada vez sabes menos...

Em que as pessoas mais idosas que admiras, respeitas e amas te deixam ou ameaçam...

Em que conheces muita gente mas cada vez tens menos amigos...

Em que pela primeira vez sabes o que é a saudade...

Em que te apetece dizer "eu amo-te" todos os dias...

Em que dizes "eu amo-te" todos os dias...

Em que começas a apreciar o vinho...

Em que não te assustas com os poucos cabelos brancos...

Em que ainda não tens 30, mas os teus 20 já lá vão...

Em que os teus heroís envelheceram...

Em que tu envelheceste mais que os teus heroís...

Em que já és mais velho que a média de idade dos jogadores da bola...

Em que algumas portas se fecharam para sempre...

Em que descobres novos caminhos...

Em que aprecias mais o Sol que a Lua...

Em que preferes a qualidade...

Em que ainda queres alguma quantidade...

Em que queres, mas já não podes mandar tudo à merda...

Em que perdes tempo com nostalgias...

Em que aprecias melhor o presente...

Em que cada vez ligas menos ao futuro...

Em que discutes coisas como "estou a chegar àquela idade"...

Em que achas que já é tarde e precisas de te deitar porque amanhã trabalhas...

Em que dizes "Foda-se! Caralho! Onde é que me inscrevo"...

Em que o teu maior desejo é a paz de espírito...

sexta-feira, 18 de junho de 2010

"E aqueles, que por obras valerosas Se vão da lei da morte libertando"


Hoje liguei a televisão e senti um calafrio...

Não se falava de futebol ou de circo político ou de velhinhas paraplégicas a viver num 5º andar (sem elevador) a cuidar do sobrinho com paralisia cerebral...

Falavam de José Saramago.

O Saramago, como nos habituámos a chamá-lo com a familiaridade com que nos referimos às figuras públicas mas também, para mim, para muitos, certamente mais a partir de hoje, com aquela admiração com que se recorda os professores que nos ficam na memória por terem feito mais do que passar-nos informação, por nos terem feito crescer.

Quando liguei a televisão percebi imediatamente o que se passara,
porque o víamos já há algum tempo a andar de mão dada com a morte e porque não temos por hábito homenagear espontâneamente aqueles contribuem e contribuíram como ele para a riqueza da nossa cultura, da nossa Língua, quem com palavras, embala e incita, revolta e acalma, a dúvida que nos faz ser, que nos faz seres...

A surpresa não foi a sua morte, mas o facto de sentir que acabara de perder algo que desconhecia pertencer-me.
Não sou dado a patriotismos, bandeira, hino, heróis (de)cantados do mar ou falsos heróis de relva. Sou o que levo comigo onde quer que esteja, gente, imagens, sabores e cheiros do "meu" Portugal.
Sou a cada instante as minhas palavras, a nossa Palavra, aquela em que penso e em que sinto.
Tenho por isso orgulho que as minhas palavras, o que elas comportam e e podem comportar, sejam também as dele, que tão bem as soube tratar.

Esta é a minha modesta homenagem ao escritor, ao Humano, José Saramago. Não será eterno, como nada pode ser, mas o que nos deixa, foi e continuará a ser por muito tempo, infinito...


sábado, 5 de junho de 2010

Minesweeper


Bem sei que cedo frequentemente à atracção do humor escatológico, e que o faço uma boa parte das vezes mais por preguiça ou falta de inspiração (porventura a mesma coisa?), do que por incapacidade para criar algo mais civilizado. Não obstante, o relato que se segue é verídico (não creio ter capacidade para poder te-lo inventado) e achei relevante partilhá-lo por razões que a seu tempo serão reveladas.

Por estas e outras, rogo paciência.


Bairro Alto. Uma noite como outras numa rua como tantas. Um senhor dos seus setenta anos passeia uma daquelas amostras caninas de pelo negro encaracolado. O objectivo do passeio não é, já o sabemos, o Átila esticar as pernas ou apanhar ar, mas cumprir com uma das inevitabilidades da sua natureza.

Fareja, contorna, fareja, arqueja, hesita, contorna, arqueja e... Átila observa o seu dono com um pequeno focinho constrangido enquanto deposita uma, um pouco mais ao lado....... duas, um metro à frente.....................t..........tre................três. Pelo abanar de cauda satisfeito, já está.

O dono, solícito, de lenço de papel na mão, debruça-se a custo e apanha uma, um pouco mais ao lado...... não... só uma?
Cataratas, reumático e/ou princípio de demência que afecte o dom milenar de contar até três, são algumas justificações que me ocorrem de repente. Mas eis que, antes que a poeira assente e o cheiro dissipe, Átila se prepara para nova investida, desta vez do outro lado da rua.


Um aparte. Não se deve questionar os desígnios defecais dos cães; milhões de anos antes do aparecimento da calçada portuguesa, da sola de borracha com sulcos profundos e desenhos intrincados e (valha-nos) do saquinho de plástico preto, já os antepassados dos nossos melhores amigos andavam por aí a brincar ao "juntar os pontinhos" por obra e graça (eu diria que mais por graça) de um qualquer capricho evolutivo. Tenho dito.


Átila volta à carga, fareja, contorna, arqueja.... Já sabem.
Desta feita, o dono, de um único agachamento conseguiu recolher tudo (só mais uma) e o lencinho de papel com indesejado conteúdo foi, à falta de um caixote de lixo a menos de cinco metros de distância e após uma mera fracção de segundo de hesitação, depositado junto à parede, fora do caminho, (claro está) junto de outros detritos (isto é importante), numa daquelas acumulações espontâneas e frequentes no Bairro Alto a que os estudiosos chamam "lixo vadio".


Quem teve a capacidade (desde já agradeço) para ler até este ponto estará a pensar - Pois pois, muito bonito. E a prometida raison d'etre (o leitor fala francês, que bem...) que me levou a dedicar minutos preciosos da minha existência ao que me parece simplesmente um exercício de estilo acerca de um cão a cagar, onde está? Onde? ONDE?

Passo a explicar. A razão de coiso deste relato, é que após os acontecimentos, me tenha ocorrido que o que acabara de presenciar podia ser encarado como uma metáfora quase perfeita do estado global das coisas no quotidiano da nossa querida praia lusitana.
Não vou apresentar uma análise detalhada para justificar a minha opinião, deixo a procura e descoberta a cada um na medida das suas motivações. Fica no entanto um último apontamento em jeito de epílogo.


Cerca de cinco minutos após o senhor e cãozinho terem ido embora passavam duas senhoras. Passo a citar livremente o que ouvi de uma delas:

"(...)pisei qualquer coisa, será que... pode ter sido... deixa cá ver..... Shiiiiiiat!!"