sábado, 5 de junho de 2010

Minesweeper


Bem sei que cedo frequentemente à atracção do humor escatológico, e que o faço uma boa parte das vezes mais por preguiça ou falta de inspiração (porventura a mesma coisa?), do que por incapacidade para criar algo mais civilizado. Não obstante, o relato que se segue é verídico (não creio ter capacidade para poder te-lo inventado) e achei relevante partilhá-lo por razões que a seu tempo serão reveladas.

Por estas e outras, rogo paciência.


Bairro Alto. Uma noite como outras numa rua como tantas. Um senhor dos seus setenta anos passeia uma daquelas amostras caninas de pelo negro encaracolado. O objectivo do passeio não é, já o sabemos, o Átila esticar as pernas ou apanhar ar, mas cumprir com uma das inevitabilidades da sua natureza.

Fareja, contorna, fareja, arqueja, hesita, contorna, arqueja e... Átila observa o seu dono com um pequeno focinho constrangido enquanto deposita uma, um pouco mais ao lado....... duas, um metro à frente.....................t..........tre................três. Pelo abanar de cauda satisfeito, já está.

O dono, solícito, de lenço de papel na mão, debruça-se a custo e apanha uma, um pouco mais ao lado...... não... só uma?
Cataratas, reumático e/ou princípio de demência que afecte o dom milenar de contar até três, são algumas justificações que me ocorrem de repente. Mas eis que, antes que a poeira assente e o cheiro dissipe, Átila se prepara para nova investida, desta vez do outro lado da rua.


Um aparte. Não se deve questionar os desígnios defecais dos cães; milhões de anos antes do aparecimento da calçada portuguesa, da sola de borracha com sulcos profundos e desenhos intrincados e (valha-nos) do saquinho de plástico preto, já os antepassados dos nossos melhores amigos andavam por aí a brincar ao "juntar os pontinhos" por obra e graça (eu diria que mais por graça) de um qualquer capricho evolutivo. Tenho dito.


Átila volta à carga, fareja, contorna, arqueja.... Já sabem.
Desta feita, o dono, de um único agachamento conseguiu recolher tudo (só mais uma) e o lencinho de papel com indesejado conteúdo foi, à falta de um caixote de lixo a menos de cinco metros de distância e após uma mera fracção de segundo de hesitação, depositado junto à parede, fora do caminho, (claro está) junto de outros detritos (isto é importante), numa daquelas acumulações espontâneas e frequentes no Bairro Alto a que os estudiosos chamam "lixo vadio".


Quem teve a capacidade (desde já agradeço) para ler até este ponto estará a pensar - Pois pois, muito bonito. E a prometida raison d'etre (o leitor fala francês, que bem...) que me levou a dedicar minutos preciosos da minha existência ao que me parece simplesmente um exercício de estilo acerca de um cão a cagar, onde está? Onde? ONDE?

Passo a explicar. A razão de coiso deste relato, é que após os acontecimentos, me tenha ocorrido que o que acabara de presenciar podia ser encarado como uma metáfora quase perfeita do estado global das coisas no quotidiano da nossa querida praia lusitana.
Não vou apresentar uma análise detalhada para justificar a minha opinião, deixo a procura e descoberta a cada um na medida das suas motivações. Fica no entanto um último apontamento em jeito de epílogo.


Cerca de cinco minutos após o senhor e cãozinho terem ido embora passavam duas senhoras. Passo a citar livremente o que ouvi de uma delas:

"(...)pisei qualquer coisa, será que... pode ter sido... deixa cá ver..... Shiiiiiiat!!"

1 comentário:

Anónimo disse...

Voltamos à dialectica das "conversas de merda" e, não me entendam mal: adoro conversas de merda. Acho inclusive que apenas os "Hiperboreos" as conseguem levar a cabo sem a culpazinha dos comuns que optam por ensaiar discursos diários baseados no telejornal matinal de forma a que passem uma imagem credível, informada e preocupada com a actualidade. Bem meus amigos, late news... são nada mais nada menos do que frases feitas destinadas à exibição egocentrista e são sinónimo de tudo menos preocupação, cultura ou informação. Faço o teste constantemente com essas pessoas ditas normais e valido a cada dia a tese de que pessoas realmente preocupadas não falam das alterações climáticas, ou do orçamento de estado, ou da política social do Governo ou dos milhões gastos em obras públicas dúbias... Fala de merda quem não diz prontamente " SANTINHO" quando ouve Nietzsche e fala de merda pois é do que se deve falar pois os assuntos realmente preocupantes requerem não palavras mas ACÇÃO!
Portanto orgulho me de pertencer à elite restrita dos apelidados de loucos, irresponsáveis ou mesmo "ordinários"... Garantindo lhes que somos sim "EXTRA ORDINÁRIOS" :) Boa menino: bom blog de merda!Os meus sinceros parabéns :)